Caro professor, apresentamos a você a série “Retornados” (2017), dirigida por Maria Pereira e Simplício Neto. em oito episódios, conta a história de africanos e afro-brasileiros que, após serem levados para o Brasil como escravizados, retornaram à África, formando comunidades e grupos culturais conhecidos como “agudás”. A série apresenta depoimentos de descendentes de agudás que vivem no Brasil e em Benin, Gana, Nigéria e Togo, explorando a interrelação histórica entre África e Brasil desde o século XVI, com foco nas dinâmicas do colonialismo, do escravismo e do imperialismo.
No episódio 2, “A saga dos chacás”, é apresentado a você, professor, a trajetória do “agudá” Francisco Félix de Souza. Por meio de sua biografia, podemos conhecer mais sobre as histórias da África e do Brasil, marcadas pelo colonialismo e escravismo. Percebe-se, também, a influência política e social da família De Souza no Benim até os dias de hoje, poder esse reconhecido por seus descendentes e por outras famílias. Vamos conhecer um pouco mais sobre essa história através de aspectos da biografia de Francisco Félix de Souza.
Não há consenso sobre a data de nascimento de Francisco Félix de Souza. Sabemos, no entanto, que ele nasceu no Brasil.
Embora no episódio afirme-se que Félix de Souza foi enviado ao Benim para comandar o Forte de São João Batista de Ajudá, localizado em Uidá, no Benim, existem outras versões.
Ao retornar à África, Félix estabeleceu acordos com o rei de Daomé e com traficantes brasileiros, passando a se dedicar ao tráfico de africanos escravizados. Como observado no episódio, alguns de seus descendentes afirmam que ele não era um traficante, mas uma pessoa que comprava prisioneiros de guerra que iam ser sacrificados pelo rei de Daomé.
Para que compreendamos melhor essas dinâmicas do tráfico, é preciso fazer referência à prática da escravidão realizada na África. Em linhas gerais, tratava-se de uma forma de submissão de comunidades, grupos ou etnias que houvessem perdido alguma batalha ou guerra. Os derrotados eram transformados em prisioneiros, e podiam ser escravizados, sendo ou não comercializados, ou então sacrificados. Quando escravizados, esses prisioneiros desempenhavam atividades relacionadas a uma “escravidão doméstica” ou “escravidão privada”, ou seja, no cumprimento de atividades de subsistência de uma família ou um grupo.
Utilizemos um exemplo citado no próprio episódio. O reino do Daomé escravizou as etnias fon, mina, nagô, entre outras. Os escravizados foram os responsáveis pelas construções palacianas. Já o conflito entre as etnias Abomé e Oyó resultou em um grande número de iorubás que foram vendidos para traficantes e enviados para o Brasil. Por fim, um dos entrevistados, Karim da Silva, pertencente às famílias Paraíso e Silva, afirma que “Eu sou, por parte do pai, negreiro (Abomé), e por parte da mãe, escravo (Oyó).” Em outras palavras, escravizava-se um inimigo, e não um negro.
Esta escravidão difere-se do escravismo de outros períodos históricos e, sobretudo, do chamado “escravismo colonial”. A escravização de africanos e sua comercialização para a América e para a Europa foi inédita por seu volume, mas também por uma característica fundamental: a racialização, que implica uma hierarquização. No escravismo praticado no continente africano, não havia esse componente racial.
Voltemos à trajetória de Félix de Souza. Na África, teria se aliado ao rei de Daomé e Abomé, Guezo, figura que detinha o monopólio da escravidão. Guezo nomeou-o vice-rei de Daomé, e Félix de Souza estabeleceu sua residência oficial em Uidá, dando início à dinastia dos Chachá.
De acordo com o episódio, existem duas versões para o nome “Chachá”: ele teria feito uma viagem, escondido em um tapete enrolado, tapete que, em língua mina, é conhecido como “chachá”; ou então, como possuía uma cultura europeizada e era muito pontual, além de fazer tudo com rapidez, conta-se que ele pedia agilidade para os africanos dizendo “já, já”.
Félix de Souza enriqueceu comprando africanos escravizados e traficando-os pelo porto de Uidá. Alguns chegam a afirmar que se tornou o maior traficante de escravizados que se tem conhecimento.
A influência política e social da família De Souza no Benim é presente até os dias de hoje. Inúmeros espaços relacionados à biografia de Félix de Souza foram monumentalizados, como o Forte de São João Batista de Ajudá, em Uidá, no Benim, transformado no Museu Histórico de Uidá; ou então o Palácio dos Chachás, também em Uidá. Sua dinastia chegou até os dias de hoje.
O episódio mostra as imagens do Conselho Supranacional da Família De Souza, reunidos para a eleição do Chachá IX. Até hoje, o Chachá é o chefe da família De Souza, e tem autoridade sobre muitas outras famílias da região, agindo como um mediador quando existem conflitos.
Segundo uma das herdeiras, os descendentes de Félix de Souza possuem um sentimento dúbio. Existe um orgulho por pertencer à aristocracia, à grande família burguesa De Souza, mas também há o lado moral, da escravidão, “pois você é isso tudo hoje, mas qual foi o seu passado?”
E, assim, voltamos ao debate sobre a escravidão, seu significado à época e sua compreensão histórica e social no presente. Embora os entrevistados afirmem que o escravismo era algo presente no cotidiano da relação triangular entre África, América e Europa, e, portanto, faça parte da História, assim como as atitudes de conivência e omissão de africanos com o tráfico, as consequências do colonialismo e do escravismo são perversas.
Além dos componentes econômicos e raciais, também reside uma imoralidade na escravidão, que diz respeito à forma de enriquecimento de diversos países europeus. No episódio, isso é problematizado a partir dos exemplos de bancos franceses e ingleses, abertos com o capital gerado da comercialização de seres humanos escravizados.
Por isso, a História da escravidão não deve ser compreendida a partir da dicotomização entre “bons” e “maus” ou “vítimas” e “vilões”; mas em sua complexidade e no reconhecimento dos benefícios e dos malefícios dessas práticas para as sociedades contemporâneas.
Propomos a você, professor, duas atividades para explorar as temáticas trazidas no episódio, direcionadas ao Ensino Médio. Estas atividades estão orientadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e coadunam-se com as seguintes competências:
Competências gerais
Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
Competências específicas – Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
Analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir da pluralidade de procedimentos epistemológicos, científicos e tecnológicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a eles, considerando diferentes pontos de vista e tomando decisões baseadas em argumentos e fontes de natureza científica.
Analisar a formação de territórios e fronteiras em diferentes tempos e espaços, mediante a compreensão das relações de poder que determinam as territorialidades e o papel geopolítico dos Estados-nações.
No âmbito das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, destacamos os seguintes princípios que guiam a elaboração destas atividades:
1. consciência política e histórica da diversidade;
2. fortalecimento de identidades e de direitos;
3. combate ao racismo e a discriminações;
4. e às determinações para a História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente, e em articulação com a história dos afrodescendentes no Brasil.
As habilidades a serem desenvolvidas em cada um desses campos estão designadas nas atividades.
Atividade 1 – Ensino Médio
(EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos.
(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.
Descrição da Atividade 1
Esta atividade tem como objetivo estudar, por meio da biografia de Francisco Félix de Souza, a História do colonialismo e a “história atlântica” da África, América e Europa. Para isso, recomendamos que você, professor, inicie a atividade com uma aula expositiva sobre as navegações portuguesas e as práticas coloniais na África e na América. Depois, aborde com a turma a história da escravidão e o tráfico transatlântico.
A partir dessa introdução, você poderá apresentar aos alunos quem foi Francisco Félix de Souza e exibir o episódio. Após a exibição, entregue aos alunos um texto com trechos da vida de Félix de Souza intercalados com retângulos em branco. Os alunos deverão realizar uma pesquisa em seus livros didáticos e na internet, e completar os retângulos em branco com informações que contextualizem aquele momento da vida de Félix de Souza.
Para isso, recomendamos que os trechos de sua vida tenham alguns marcos cronológicos, ou então algumas palavras-chave, para auxiliar os alunos no desenvolvimento da pesquisa. Com essa atividade, esperamos que a turma consiga relacionar os episódios da trajetória de Félix de Souza com acontecimentos da “História atlântica”, e compreender os limites e as possibilidades configurados por seu espaço de experiência.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a temática e para contribuir na proposição desta atividade, recomendamos as seguintes leituras:
1) OLIVEIRA, Paulo César. Interseções transculturais no Atlântico Negro: o caso Francisco Félix de Souza. Via Atlântica, [S. l.], v. 1, n. 25, p. 131-146, 2014. DOI: 10.11606/va.v0i25.69548. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/69548. Acesso em: 17 maio. 2022.
2) COSTA e SILVA, Alberto. Os primeiros anos de Francisco Félix de Souza na Costa dos Escravos. África, [S. l.], n. 22-23, p. 9-23, 2004. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/africa/article/view/74516. Acesso em: 17 maio. 2022.
3) LAVEZO, Juliana. A biografia nas aulas de história: experiências em sala de aula. In: Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de História. Anais do XI Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História - Perspectivas Web 2020. Ponta Grossa: ABEH, 2020. p. 1-8. Disponível em: https://www.perspectivas2020.abeh.org.br/resources/anais/19/epeh2020/1606789630_ARQUIVO_4adb88d25cbe550bb37616601374b81f.pdf. Acesso em 17 maio. 2022.
Atividade 2 – Ensino Médio
(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.
(EM13CHS605) Analisar os princípios da declaração dos Direitos Humanos, recorrendo às noções de justiça, igualdade e fraternidade, identificar os progressos e entraves à concretização desses direitos nas diversas sociedades contemporâneas e promover ações concretas diante da desigualdade e das violações desses direitos em diferentes espaços de vivência, respeitando a identidade de cada grupo e de cada indivíduo.
Descrição da Atividade 2
Esta atividade tem como objetivo fomentar um debate na turma sobre as políticas de ações afirmativas, principalmente as cotas raciais, como forma de reparação pela desigualdade de direitos e oportunidades a que a população negra foi submetida ao longo da História brasileira. Para isso, sugerimos que você, professor, inicie a atividade exibindo o episódio para seus alunos, solicitando a eles que prestem a atenção na avaliação que os entrevistados fazem da escravidão.
Depois de assistirem ao documentário, apresente aos alunos alguns argumentos contrários e favoráveis às cotas raciais e peça que os alunos contribuam com frases que já ouviam ou com ideias que acreditam. A ideia é que o debate gire em torno da compreensão histórica do que foi a escravidão, mas também de suas consequências para as sociedades. Pode ser que existam opiniões bastante divergentes na turma, ou, então, que muitos acreditem que a escravidão não é uma experiência que demande ações de reparação no presente.
Nesse sentido, você poderá utilizar a argumentação de Luiz Felipe Alencastro no debate sobre a constitucionalidade das cotas raciais ocorrido no Supremo Tribunal Federal, em que defendeu que as políticas de ações afirmativas não era uma forma de reparação histórica (do passado), mas uma reparação para a desigualdade atual, do presente da sociedade brasileira.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre a temática e para contribuir na proposição desta atividade, recomendamos as seguintes leituras:
1) LAW, Robin. A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental (1800-1849). Topoi (Rio de Janeiro). 2001, v. 2, n. 2, p. 9-40. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2237-101X002002001. Acesso em: 17 maio. 2022.
2) GURAN, Milton. Agudás – os “brasileiros” do Benin. Studium, Campinas, SP, n. 4, p. 23–29, 2019. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/studium/article/view/10058. Acesso em: 17 maio. 2022.
3) ALENCASTRO, Luiz Felipe. Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://www.adusp.org.br/files/GTs/etnia/parecer.pdf Acesso em: 17 maio. 2022.